Cristiano Romero
Valor Econômico - 04/04/2012
A provado semana passada pelo Senado, o projeto de lei que
cria o Fundo de Previdência Complementar do Servidor Público Federal (Funpresp)
é, sem dúvida, a reforma estrutural mais importante realizada no país em quase
uma década. O projeto regulamenta a emenda constitucional, aprovada em 2003,
que igualou as condições básicas de aposentadoria de trabalhadores dos setores
público e privado.
Como o diabo mora nos detalhes, o projeto aprovado pelo
Congresso trouxe novidades em relação à proposta original que põem em risco a
solvência do Funpresp. É bem provável que a presidente Dilma Rousseff, que teve
coragem política de ressuscitar um projeto abandonado havia oito anos, vete
algumas das mudanças feitas pelos parlamentares.
O principal risco, na avaliação de Marcelo Abi-Ramia
Caetano, economista do Ipea especialista em previdência, está no Fundo de
Cobertura de Benefícios Extraordinários (FCBE). A ideia é que esse fundo pague
um bônus para as categorias do funcionalismo que, pela Constituição, têm
direito à aposentadoria antecipada. São os casos, por exemplo, das mulheres e
dos professores do ensino infantil, fundamental e médio.
Fundo dentro do Funpresp desestimula adesão masculina
Para ficar em dois casos, o FCBE faria aporte extraordinário
de 40% sobre as reservas acumuladas por uma professora de ensino médio e de
16,7% por uma servidora. Caetano vê pelo menos quatro problemas nesse modelo.
O primeiro decorre do que os economistas chamam de seleção
adversa. Como os bônus terão que ser pagos pelo sistema, isto é, pelo próprio
Funpresp, e a adesão é voluntária - o funcionário público não é obrigado a se
filiar ao fundo -, o FCBE vai gerar desincentivos à filiação de parte de seus
financiadores. "Isso pode causar ciclo vicioso em que poucos homens se filiam
ao Funpresp por causa do elevado custo do FCBE, o que reduz ainda mais a adesão
masculina e aumenta o custeio do FCBE", explica Caetano.
O segundo problema é que as categorias beneficiadas pelo
FCBE tenderão a sobreacumular para receber o bônus - quanto maior for a reserva
acumulada, maior será o bônus. Enquanto isso, os demais participantes do fundo
terão o incentivo contrário: subacumular para fugir do ônus de financiar o
FCBE. "A estratégia ótima para um casal de servidores seria a esposa
poupar além e o marido aquém como forma de minimizar o custeio e maximizar o
recebimento do FCBE", exemplifica Caetano.
O terceiro risco é de insolvência, afinal, nada garante que
o FCBE terá recursos capazes de cobrir os benefícios prometidos. Se a seleção
adversa e a reação aos incentivos postos ocorrerem da forma como Caetano está
prevendo, e é bastante provável que isso aconteça, o perigo de insolvência será
considerável, dado o reduzido tamanho das contribuições dos participantes
financiadores do FCBE.
"Ademais, a composição por gênero e atividade dos
futuros servidores independe do poder de decisão do Funpresp, tornando alta a
imprevisibilidade dos fluxos de receita e despesa do FCBE", adverte o
especialista.
Um outro problema é que o pagamento de aposentadorias diferenciadas
desrespeita o princípio da contribuição definida, consagrado pelas reformas
previdenciárias aprovadas pelo país na última década e meia - até o fim dos
anos 90, prevaleceu o sistema de benefício definido, uma forma, insustentável,
de aposentadoria integral.
Uma possível solução para esses desequilíbrios seria o
Tesouro Nacional, responsável pela contrapartida patronal do Funpresp,
aumentar, via elevação de alíquota, sua contribuição ao fundo nos casos das
aposentadorias especiais. Não é a melhor saída porque impõe à sociedade um
custo adicional, quando o objetivo é diminuir custos, mas pelo menos
asseguraria a solvência do fundo.
Há outros problemas na forma como o Funpresp saiu do
Congresso. Fruto do corporativismo que impera em instâncias do setor público, a
criação de um fundo de pensão para cada poder da República é um tiro no pé
porque diminui a economia de escala que um fundo apenas possuiria. Escala
permite reduzir custos de administração e aumentar os ganhos dos segurados - no
regime de benefício definido, os lucros do fundo de pensão são repartidos entre
os participantes.
A proibição de adesão de governos estaduais e prefeituras ao
Funpresp é, também, uma limitação sem sentido. Na prática, funciona como um
obstáculo à ampliação da previdência complementar no país, uma vez que muitos
Estados e municípios não têm escala para criar o próprio fundo. Um outro
aspecto condenável do projeto aprovado é o que acaba com a necessidade de
terceirização da gestão dos recursos. Isso abre espaço, lembra Caetano, para
ingerência política na administração dos fundos.
Ainda é possível corrigir alguns desses equívocos. Com o
Funpresp, o Brasil está dizendo ao mundo que, aqui, não existe mais o instituto
anacrônico da aposentadoria integral. Mostra também que, no longo prazo, o
gasto previdenciário tende a se equilibrar. Haverá uma demanda a menos por
aportes do Tesouro (leia-se: da sociedade) para cobrir rombos - em 2011, o
déficit das aposentadorias do funcionalismo federal beirou os R$ 60 bilhões,
numa escalada preocupante que ainda pode exigir das autoridades alguma medida
saneadora.
A criação do Funpresp diminui, portanto, uma das principais
fontes do déficit público - os gastos com pessoal ativo e inativo representam
40% da despesa primária da União. Com o tempo, isso ajudará o governo a reduzir
o déficit orçamentário, o que, por sua vez, contribuirá para diminuir a taxa de
juros com que o Estado brasileiro se financia no mercado.
Um outro efeito positivo do Funpresp é que, ao arrecadar
recursos no curto prazo e assumir obrigações de longo prazo (o pagamento de
aposentadorias no futuro), ele aumentará a poupança doméstica. Para honrar as
obrigações, o fundo terá que investir os recursos em negócios rentáveis,
ajudando a financiar a economia e, assim, a reduzir a dependência do país de
poupança externa, um dos principais fatores de apreciação da taxa de câmbio.