sábado, 15 de setembro de 2012

O paraíso na Terra


Leandro Loyola
Revista Época     -     15/09/2012




Ele existe. Quem paga é o contribuinte brasileiro. Os funcionários do Congresso formam uma casta no setor público, com média salarial de R$ 15 mil


São 11 horas da manhã da quinta-feira, 13 de setembro, e Nilton Paixão, funcionário da Câmara dos Deputados, está de camisa azul-escura Lacoste e calça jeans. “Você se importa se eu desligar o ar? A secura faz mal”, diz Nilton, acomodando-se numa das poltronas pretas da sala da presidência do Sindicato dos Servidores do Legislativo, no 7o andar do edifício Belvedere, em Brasília.

Nilton é presidente do Sindilegis – o poderoso sindicato que defende os interesses de cerca de 11 mil servidores públicos da Câmara, do Senado e do Tribunal de Contas da União – desde 2010. A média salarial da categoria está na casa dos R$ 15 mil. Nilton, contudo, ganha ainda mais. No papel, R$ 37 mil brutos. Ele garante que, na realidade, recebe menos: R$ 26.723,13, ou o teto do funcionalismo público. É o mesmo salário que recebem ministros do Supremo Tribunal Federal, deputados federais e a presidente da República. “Não quero abrir meu salário para ser coerente com a luta do sindicato na Justiça”, diz Nilton.

Esta é a segunda reportagem de uma série de ÉPOCA sobre os supersalários no setor público. Salários que Nilton e seus colegas de Congresso, por uma questão de “coerência”, preferiam que não fossem expostos ao conhecimento dos brasileiros. Desde maio, o Sindilegis tenta evitar, na Justiça, que Câmara e Senado publiquem, mensalmente, a lista com nomes e os respectivos salários de seus servidores – como já fazem os órgãos do Poder Executivo e parte do Judiciário. É o que determina um decreto baixado pela presidente Dilma Rousseff em 17 de maio. 

Trata-se de um dos filhotes da Lei de Acesso à Informação, sancionada em novembro do ano passado. A lei regulamenta a desejável transparência do Poder Público, como prevê a Constituição – e como detestam alguns sindicalistas. Na semana passada, o Tribunal Regional Federal da 1a Região derrubou uma liminar do Sindilegis que impedia o Senado de publicar a lista. 

“Ninguém, seja na iniciativa privada, seja no serviço público, quer ser exposto assim”, diz Nilton. Ainda mais se, como no caso da Câmara e do Senado, o contracheque mostrar valores acima do teto de R$ 26 mil que a lei permite. No mês passado, o Senado pagou salários acima desse teto a mais de 1.400 funcionários. Um técnico em eletrônica recebeu R$ 47 mil brutos. Com os descontos, R$ 33 mil chegaram a sua conta bancária. 

A Câmara dos Deputados tem 2.300 servidores na mesma invejosa situação. Um analista legislativo recebeu quase R$ 32 mil em agosto. Três outros analistas receberam R$ 27 mil. Graças ao trabalho de Nilton e do Sindilegis, não é possível saber seus nomes nem o que fazem para merecer tamanha quantia.

“Somos a favor da divulgação individual dos salários, mas não nominal”, diz Nilton, sempre sorrisos. “Somos totalmente favoráveis à transparência. Mas inclusive a transparência tem de ter limite.” Por quê? “A lista poderia ser usada por ladrões em busca de vítimas”, afirma, antes de exibir o melhor de seu raciocínio: “Uma lei nova tanto encanta quanto assusta. 


Mesmo com boas intenções, podemos chocar o ovo da serpente. Às vezes, o apelo popular leva à morte de judeus: Hitler tinha 80% de aprovação na Alemanha. Em alguns momentos, o servidor público é usado como bode expiatório”. Terá imensa dificuldade quem tentar encontrar alguma lógica – qualquer que seja – em tal afirmação.

O Congresso não precisa de bodes ou serpentes para furar o teto dos salários. Basta dar um jeitinho. É só inventar algum jargão para dar mais dinheiro aos funcionários – e dizer que não se trata de salário. Há adicional para quem exerce função comissionada, adicional de horas extras, adiantamento de abono natalino, diárias pagas em caso de viagem, abono de permanência (pago a servidores que já poderiam ter se aposentado), auxílio-alimentação, auxílio-creche… Nilton defende os abonos, os adicionais, as diárias, o que vier: “O servidor vai fazer hora extra de graça? Vai assumir cargo de direção e não vai ganhar mais por isso?”.


Assim como Nilton, os funcionários do Congresso têm de trabalhar oito horas diárias, de segunda-feira a sexta-feira, entre 8h30 e 18h30. Graças às peculiaridades das agendas dos parlamentares, parte da turma faz horas extras, mas tem rotinas mais leves às segundas-feiras e sextas-feiras. E descansa em dois períodos de recesso: um em julho e outro, de quase dois meses, no final do ano. 


Há um ano foi instalado o controle eletrônico de ponto no Congresso Nacional. As horas extras vão para um banco de horas. São pagas em mais folgas, de modo a compensar a cansativa faina. Uma minoria de servidores quer tornar sua vida ainda melhor. Alguns já foram vistos chegando ao Senado às 7 horas da manhã, não de terno, gravata ou saias, mas com roupas típicas de academia de ginástica, para registrar o ponto. Outros param o carro por perto, registram o ponto e saem segundos depois, para voltar mais tarde. Ou não.

+Estado Ltda.

A respeito das excepcionais condições de trabalho, o antropólogo Darcy Ribeiro dizia que “o Senado é melhor que o paraíso porque não preciso morrer”. Se o paraíso celeste é um desejo comum a cristãos, muçulmanos, judeus e outros, esse paraíso terrestre localizado na Praça dos Três Poderes atrai cada vez mais crentes de que a vida profissional pode ser tranquila e bem paga. Esses fiéis estudam freneticamente e investem em cursos preparatórios para disputar uma vaga na Câmara ou no Senado. Em junho, cerca de 157 mil candidatos disputaram o concurso promovido pelo Senado para preencher 212 vagas. 


Enfrentaram uma prova difícil, em busca do crachá eletrônico capaz de abrir os portões do paraíso. O recorde pode ser batido neste ano, quando a Câmara dos Deputados fará seu concurso. No último, em 2007, 73.700 pessoas disputaram 212 vagas. Se o Sindilegis de Nilton mantiver tudo como está, com a lista nominal de salários sob sigilo, melhor ainda. 

Para o resto dos brasileiros, resta a conta. Em 2012, a Câmara deve gastar R$ 3,4 bilhões em salários para quase 18 mil servidores (entre concursados, comissionados e terceirizados). O Senado deve gastar R$ 3,3 bilhões com pouco mais de 6.300 servidores.
O paraíso de Nilton custa caro.



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