sábado, 15 de novembro de 2014

Administração pública brasileira à deriva


BSPF     -     15/11/2014




Setor público permanece operando sob um frágil regime de regulação. Por Nilson do Rosário Costa

A necessária ampliação da qualidade dos serviços públicos foi discutida negligentemente nas eleições de 2014. A despeito da queda de braço sobre o papel do setor público na economia, nenhuma das coalizões em disputa explicitou a sua preferência de modelo organizacional de Estado. A omissão é particularmente grave porque o país está diante de um elevado déficit de formulação política para o setor público: desde a redemocratização, o assunto só foi seriamente confrontado durante a discussão do Plano Diretor da Reforma Aparelho de Estado (PDRAE) de 1995.

A reforma de Estado, capitaneada por Bresser-Pereira, defendia a separação das funções do Executivo federal, pela redução do quantitativo de empresas estatais e da prestação direta de serviço. Por esta opção, o Executivo federal privatizou empresas e concedeu atividades públicas a terceiros. O PDRAE criticou o modelo de gestão das empresas estatais por favorecer o excesso de pessoal, metas organizacionais inconsistentes e déficit no controle pelo Congresso, tribunais e Ministério gestor.

Nesse caminho, o governo FHC também ampliou o Programa Nacional de Desestatização (PND), iniciado em 1991. Diretamente associadas à redefinição das novas funções do Estado, as agências reguladoras independentes foram instituídas na cena administrativa federal brasileira em 1996.

No campo da provisão direta de serviços tipicamente sociais, o PDRAE propunha a reestruturação do contingente de pessoal vinculado ao poder Executivo federal, que crescera desde a promulgação da Lei 8112 de 1991 do Regime Jurídico Único. A orientação era a de que os serviços providos aos cidadãos, como SAÚDE, educação, cultura e a pesquisa científica, de interesse público, fossem delegados às organizações sociais (OSS), criadas pela Lei 9.637, de 15 de maio de 1998.

O PDRAE promoveu ainda a Emenda Constitucional 19 (EC-19) em 1998, modificando o artigo 39 da Constituição Federal de 1988, que dispunha sobre o regime jurídico único e os planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas. A EC-19 possibilitou o retorno do regime celetista para as autarquias e fundações, resgatando o modelo existente na Constituição Federal de 1967.

Ao contrário da gama de iniciativas de reforma organizacional do Estado do governo FHC, os governos Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2010-2014) foram indiferentes à implantação de uma agenda alternativa para a administração pública. A assunção dessa agenda implicaria, sob a perspectiva da cultura política petista, uma forte retomada do ativismo governamental por meio da reestatização das empresas de infraestrutura e o abandono dos formatos organizacionais inspirados do PDRAE, como, por exemplo, o modelo das agências reguladoras autônomas. Já é parte da história que esta contrarreforma não aconteceu.

Paradoxalmente, observa-se desde o primeiro governo Lula a permanência, difusão e ampliação dos variados formatos organizacionais, consolidando um mosaico de mecanismos de contratação de força de trabalho e compra de serviços. Além da organização administrativa direta e das autarquias, o setor público permanece operando sob um frágil regime de regulação, com empresas públicas, empresas de capital misto, serviço social autônomo, fundação estatal de direito público, fundação estatal de direito privado e mesmo as OSS! A pluralidade dos formatos organizacionais revela o temerário pragmatismo no exercício da função governamental.

No plano organizacional, o exemplo mais emblemático deste comportamento errático é a adoção do modelo das OSS na criação da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii) e do Instituto Nacional de Pesquisas Oceanográficas e Hidroviárias (INPOH) pelo governo Dilma. A escolha é particularmente intrigante porque o modelo das OSS permanece demonizado pelo Partido dos Trabalhadores: desde 1998 o partido sustenta no Supremo Tribunal Federal (STF) pedido para que elas deixem de existir.

Na escolha do modelo OSS, o Executivo federal delega imenso espaço decisório aos agentes econômicos: autonomia sobre ativos, gestão da força de trabalho e distribuição de excedentes das receitas originárias de dotação orçamentária pública. O que deve exigir a sociedade destas inovações organizacionais, aleatoriamente disseminadas fora do contexto regulatório em que foram criadas? O que elas indicam sobre o compromisso com qualidade e responsabilidade dos serviços públicos ainda prestados pelos velhos modelos organizacionais? Seguramente, pouco ou nada.

É sempre bom lembrar que, no Estado de São Paulo, a implantação de novos hospitais estaduais, no modelo OSS, na década de 1990, foi acompanhada pelo fortalecimento da capacidade governamental de contratar e regular em nome do interesse público e dos direitos coletivos.

Neste caso, o contrato de gestão das OSS contemplou critérios palpáveis e compreensíveis de avaliação de desempenho e responsabilização, mediante indicadores de efetividade, qualidade e produtividade. O Conselho Estadual de SAÚDE, Assembleia Legislativa e o próprio Ministério Público foram instâncias ativas no verdadeiro pacto de governabilidade que a implantação do modelo OSS exigiu no Estado.

Não seria esse aprendizado de pactuação institucional vital para qualificar a administração pública diante da incerteza jurídica que o pluralismo organizacional tem produzido? Resta, sem dúvida, demandar uma posição clara do novo Executivo federal sobre o modelo administrativo para o aparelho de Estado brasileiro.

Artigo:  Nilson do Rosário Costa é Pesquisador da Área de Políticas Públicas e SAÚDE da Fundação Oswaldo Cruz.

Fonte: Valor Econômico


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