Correio Braziliense
- 04/12/2017
Como no clássico 1984, as palavras ganham o significado que
se lhes quer atribuir, mais ainda em tempos de pós-verdade. A farsa é um meio
utilizado para manipular uma população cada vez menos informada e mais
alienada. Assim é que a perda de noção da diferença entre prerrogativa e
privilégio serve de quadro de fundo para, diante do fracasso da chamada reforma
previdenciária - pela inconsistência dos conceitos, dados e projeções oficiais
-- empurrar-se qualquer coisa para a sociedade.
Deste modo, o governo não se dá por vencido e agrada ao deus mercado,
mesmo ao preço das mais vergonhosas e onerosas negociações já realizadas entre
Poderes da República.
Neste vale-tudo de desinformação, renovam-se velhos chavões,
como a afirmação de que os servidores civis se beneficiam de proventos
milionários, quando se sabe que, para os que ingressaram a partir de 4 de
fevereiro de 2013, o teto da aposentadoria é o mesmo do INSS para o setor
privado. Mesmo os antigos, que estavam sujeitos a outras regras - compulsórias
- e a outras garantias, não se aposentam "de graça", pois sempre
contribuíram sobre o total da remuneração, e não sobre o teto do INSS (fato
sempre deliberadamente omitido).
Ao contrário dos demais beneficiários da Previdência,
continuam contribuindo como aposentados (depois de contribuírem a vida toda). E
não têm FGTS. Não existia, aliás, nenhum fundo específico; o patrão - o ente
público empregador -, além de não contribuir com a sua parte, se encarregou de
desviar por décadas o dinheiro da Previdência para as mais diversas e
estapafúrdias finalidades.
Pela Emenda Constitucional nº 41, de 2003, esse servidor
perdeu também a integralidade (pelo último salário) e a paridade (pela
incorporação aos aposentados dos benefícios da ativa), asseguradas desde seu
ingresso no Serviço Público e ratificadas na Constituição de 1988. Pelo
critério da média salarial e desvinculado do cargo de origem, terá que se
conformar com a deterioração crescente de seu padrão de vida na velhice e na
doença.
Outro aspecto deliberadamente distorcido é a habitual
comparação estabelecida entre remunerações no setor público e na iniciativa
privada, que têm histórico e características absolutamente distintas. O nível
de exigências para o ingresso e no exercício da função pública é compatível com
a qualidade e responsabilidade requeridas para o cumprimento da missão do
Estado.
Essa sistemática campanha contra o servidor, contra o
serviço público, ocorre num país em que a participação dos salários na renda é
inferior a 45%. As tentativas continuadas de desprestígio dos servidores não passam
nem de longe pela discussão sobre a repartição entre capital e trabalho.
Em geral também não se questiona o vexatório padrão salarial
dos trabalhadores em geral, cujo rendimento real médio é de R$ 2.105, 2,24
vezes o salário mínimo, já ultrapassado pela China. O servidor não é o
responsável por 66% das famílias terem renda até R$ 2.034, e 46%, até R$ 1.356.
Se queremos reverter a absurda desigualdade existente no
Brasil, basta de hipocrisia, ao fazer redistribuição apenas entre
trabalhadores, assalariados, servidores, classes médias e baixas. Aliás, os
donos e dirigentes de nossas empresas recebem o grosso de suas remunerações por
meio de lucros - não tributados - e não de salários.
Vale ainda enfatizar que servidores públicos não são apenas
os civis. Quando se comparam as pensões civis e militares, constata-se que as
primeiras representam apenas 55% do total. Quando se comparam as aposentadorias
civis e as reformas militares, o percentual do dispêndio com as primeiras é de
73%. Não se compreende, assim, porque há tanta seletividade no trato do
assunto, menos ainda ao comparar os respectivos quantitativos de pessoal.
E, para concluir, causa perplexidade constatar que o valor
referente aos cargos em comissão corresponde ao inacreditável percentual de 50%
das remunerações fixas do pessoal ativo, o que atesta inquestionavelmente que a
Inquisição condena, de forma implacável, os funcionários concursados, e que o
preço para impor as reformas passa inevitavelmente pelas prebendas que os donos
do poder repartem desse inesgotável butim da riqueza brasileira, a que a
maioria esmagadora da população jamais teve acesso.
Artigo: Roberto Bocaccio Piscitelli - Professor da
Universidade de Brasília